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Murilo
Brasil, desde 1967 no jornalismo, publicou centenas de crônicas,
comentários, pesquisas etc., sobre variados temas. Aqui
estão reproduzidos alguns desses trabalhos.
O
GRILO E A MORTE DA SEGUNDA PESSOA DO PLURAL
Um
pequeno inseto, desses que a zoologia chama de ”saltatórios”,
acercou-se de mim, com suas antenas e seu aparelhinho musical, anunciando
um protesto. O grilo, era um grilo falante, começou por criticar
o descaso que, para ele, existe atualmente na língua portuguesa:
—
Olha, vocês escribas de jornais e outros veículos
de comunicação, estão irremediavelmente
limitados pelo uso de um vocabulário curto. Vez em quando,
leio jornais e publicações várias, sem
encontrar aquela riqueza de termos de muitos decênios
atrás. Dava gosto trafegar os olhos na opulência
idiomática de um Rui Barbosa formando frases ricamente
adjetivadas!...
Surpreso
e “grilado” com a visita e a bronca da diminuta criatura,
respondi:
Bem,
meu gentil amiguinho, você deve entender que a linguagem de
hoje há de refletir um modo de falar atual. Compreenda que
nossa língua passa por período de transição,
uma evolução necessária.
Intransigente
na defesa das mais legítimas tradições dos
clássicos portugueses, o grilinho rebateu:
—
Mas, que raios de evolução é essa? A linguagem
sintética que vai por aí parece código
cifrado: legal, palavra respeitabilíssima nas suas configurações
jurídicas, foi retirada dos ambientes austeros dos tribunais
e hoje vive surrada por usos e abusos. Fico rubro de cólera
quando ouço a palavra paca ser empregada a torto e a
direito por bocas que já nem atentam para suas implicações
pornográficas!..
Procurei
explicar ao caprichoso e puritano inseto que tais implicações
somente existiriam nas mentes maldosas; porque na mania de
síntese,
que sem dúvida vai por aí, a palavrinha — longe
de ter raízes em palavrão — seria apenas uma
simplificação do termo “para caramba”.
O grilo arqueou as antenas e garbosamente proclamou:
—
Rejeito os argumentos! Neologismos, corruptelas, gírias
e quejandos, devem ser banidos, embarcados e mandados de volta
para as regiões incultas de onde vieram!
Já
de antenas perigosamente em riste, qual espadas, berrando seu repúdio,
o grilo prosseguiu:
—
Vocês mataram a segunda pessoa do plural! Nem na linguagem
escrita, nem na linguagem falada, lemos ou ouvimos aquela beleza
gótica de construção esmerada, cheia de
nobreza e exortação. Hoje, o vós
está limitado aos recitativos religiosos. O vulgar você
e o íntimo tu fizeram fenecer um tratamento que
atribuía respeito e consideração. O senhor,
termo antes empregado como um relacionamento cerimonioso, está
abastardado, muitas vezes até servindo para profligações
(“broncas”, como dizem vocês). Muitas vezes,
oculto na vegetação, ouvi acirradas discussões
onde havia o uso e abuso da palavra: o “senhor”
é um isso ou aquiIo; a “senhora” está
me desobedecendo; o “senhor” está demitido
etc etc. Como é que pode?
Senhor
grilo profligador, respondi, não só pode como deve.
Na bronca de um auê, de um bate-boca, de um arranca-rabo,
chamar o adversário de “senhor” é impor
a necessária distância. Visivelmente irritado, o grilo
rechaçou:
—
Verbero vossa mísera retórica. Vós causais
profundos malefícios ao vernáculo com este linguajar
de beira de cais, e saibais que não estou querendo ofender
a laboriosa classe dos estivadores.
E
o inseto prosseguiu:
—
Reafirmo que a nobilíssima segunda pessoa do plural jaz
sepulta por abandono. E não somente ela! Vossa preguiçosa
pena transformou os dicionários em vastos cemitérios
de palavras mortas. Exterminastes palavras de grande beleza
por aposentadoria compulsória; sois o coveiro de particípios
passados que hoje poderiam estar vivos: ganhado e enxugado
são bons exemplos, e advirto-vos que pegado já
começa a perecer por inexorável reumatismo, colocado
em humilhante desuso, já quase completamente substituído
por um abominável pego.
E
o grilo continuou:
—
Gosto de ler o mestre João Antero de Carvalho em suas
dominicais crônicas futebolísticas na imprensa
carioca, pois ele sabe cultivar, qual competente jardineiro
da Última Flor do Lácio, uma linguagem de inexcedível
encanto vernacular: fluente, defluir, transato,
obtemperar, prefalado, além de outras jóias
valiosas da língua portuguesa. Li, certa vez, com profundo
deleite, o Antero referir-se a aniversário como data
genetlíaca. Uma formosura!...
Aí,
resolvi cortar os devaneios daquele incrível grilo falante:
Senhor
grilo: vê se fica bem, numa festa de aniversário, a
moçada em torno da mesa do bolo, batendo palmas e cantando:
“Parabéns pra você, nesta data genetlíaca”...
Pousado
sobre a mesa, o grilo ignorou minha provocação e deu
a bronca final:
—
Nesta famigerada fase de transição do idioma vernáculo,
eu, grilo, tenho sofrido horrores. Meu nome tem servido para
referir coisas negativas: barulhos de velhas ou mal ajustadas
peças de automóveis são “grilos”;
sujeito que toma terras de outrem, usando documentos falsos
é “grileiro”, e a terra chamada de “grilo”.
E tem mais: pessoa que sofre de instabilidade emocional, ou
insanidade mental, está “grilada” e —
como diz essa tal linguagem vulgar que vai por aí —
"tá com a cuca cheia de grilos".
E
lá se foi meu amiguinho grilo correndo procurar um analista...
("Jornal
de Letras" - maio 1977)
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Tela de Jules Lenepveu retratando
o sacrifício da heroína francesa Joana D'Arc, queimada
em 30 de maio de 1431.
"JOANA
D'ARC DE SOROCABA"
O
Brasil já tem a sua Joana D’Arc? Talvez! Ela seria
Maria Aurora de Oliveira Zoppa, da cidade de Sorocaba, no interior
de São Paulo, que bateu às portas da Justiça
Trabalhista obtendo vitória em curioso processo. Lutou ela
contra as alegações da Companhia de Fiação
e Tecelagem Santa Maria que a impedia de dirigir homens, sob a afirmação
categórica de que “não cometeria tamanha infantilidade
em colocar uma mulher na chefia de um grupo de homens mais experientes,
mais idosos, pois são bem conhecidos os problemas de ordem
física a que está sujeita”, acrescentando: “A
reclamante nunca demonstrou qualquer vocação para
transformar-se em uma Joana D'Arc sorocabana”.
Raios,
diante de argumentação tão desastrosa, a Juíza
Maria Alexandra Kowalski Motta, da 2ª Junta do Trabalho daquela
cidade, além de decidir em favor da reclamante, também
enviou representação à Procuradoria da República
solicitando que a empresa seja enquadrada criminalmente por discriminação
sexual, apontando flagrante violação do princípio
estabelecido no § 1º do Artigo 153, da Constituição
Federal, e no Artigo 5° da CLT, que reza: “A todo trabalho
de igual valor corresponderá salário igual, sem distinção
de sexo”.
À
margem do processo, vale perguntar: os homens experientes e idosos
que a empresa recusou submeter à chefia de Maria Aurora foram
consultados? Creio que não. Sendo eles tarimbados e veteranos,
possuidores de apreciável sabedoria de vida, não se
recusariam a ter como chefe companheira de serviço a lhes
ditar ordens com um certo toque feminino, privativo das mulheres;
exceção feita ao pessoal da “coluna-do-meio”,
que faz grotesca força, mas não consegue adquirir
o referido toque, gentilmente concedido por Deus somente às
filhas de Eva...
Estranha,
também, a argumentação da empresa tecendo analogia
entre Maria Aurora e Santa Joana D'Arc, pois aquela, desde 1965
ocupante do cargo de mestre (embora estivesse registrada como encarregada
de preparação e tecelagem), apenas pedia equiparação
salarial ao cargo de chefia que efetivamente exercia. Ora, a operária
jamais desejou salvar a França nem correr riscos que a fizessem
cair nas mãos de Pierre Cauchon, arcebispo de Beauvais, para
ser encarcerada em meio “ao pão da dor e à água
da agonia”, e, cinco meses depois, queimada publicamente em
fogueira ardente, como aconteceu com a maior heroína de França,
incendiada na Praça do Mercado Velho, em Rouen.
Maria
Aurora, anônima sorocabana, apenas reclamou os trocados que
vinham sendo surripiados de seu salário, reclamação
que, provavelmente, teve o silencioso apoio dos homens empregados
na tecelagem (é notório o cavalheirismo dos varões
sorocabanos), solidariedade esta que pode ser comparada a dos entusiasmados
soldados daquele pequeno exército francês que se puseram
sob o comando da humilde aldeã de Domremy para obter heróica
vitória na batalha de Orleans; página gloriosa da
história francesa!
No
sopro cívico que varreu terras de França, não
houve lugar para discriminações sexuais, ao contrário
do episódio de Sorocaba onde um empregador quis fazer da
tecelã Maria Aurora uma subcriatura de Deus, sujeita a mil
e um tormentos físicos, incapaz de chefiar grupo de companheiros
de trabalho.
O
departamento jurídico da empresa alegara que ela não
cometeria tamanha infantilidade em colocar uma mulher na chefia;
por sua vez, o gerente da mesma empresa disse achar infantilidade
a representação à Procuradoria da República.
Tal repetição do substantivo (infantilidade) pode
conduzir à desconfiança que a direção
da tecelagem, além do preconceito contra as mulheres o tem
também contra as crianças, o que pode acarretar sérios
castigos por parte de Cosme, Damião e Doum, Santos Meninos
já um tanto aborrecidos por verem sua companheira de santidade,
Joana D’Arc, envolvida na terrena história.
(Jornal
da Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio
– setembro 1980)
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NOS
TEMPOS EM QUE OS REFEREES APITAVAM OFFSIDES
A
língua portuguesa é rica ou pobre de vocábulos?
Estará o vernáculo perdendo força de expressão?
Já fizera esta pergunta em artigo publicado no jornal “O
Dia”, do Rio de Janeiro, 31-12-72, ao anotar a praga de termos
estrangeiros que infestam o idioma pátrio. O chamado “economês”
tem sido um dos meios de proliferação dos indesejáveis
parasitas, pois os economistas usam e abusam de palavras que podem
ser perfeitamente traduzíveis. Publicações
elaboradas pelos modismos desses profissionais estão cheias
de marketing, trading, know-how, design etc. Palavras que
têm seus equivalentes na língua portuguesa; mas, muitos
teimam em usá-las. E não é só o “economês”
que se apresenta contaminado; publicações outras,
também andam cheias de tolas pretensiosidades.
Felizmente
o futebol deu o grande exemplo. Apesar das suas origens britânicas,
ele se livrou dos termos nascidos nos campos de Oxford, Cambridge,
Etton e, aportuguesado, deu ao Brasil conhecidas glórias.
Crack passou a craque e subiu à categoria de cobra;
o corner ganhou maior importância e iminência
de perigo de gol quando foi transformado no perigoso tiro de canto;
center-half, foward, goal-keeper, back ficaram dando shoots
no passado e já não se adentram nos nossos estádios.
Por sua vez, o referee também ficou apitando esquecidos
matchs.
O
penalty foi abolido e substituído pelo pênalti,
que vai sendo transformado em penalidade máxima, termo que
exprime mais adequadamente a magnitude do fato.
Uns
raros comentaristas, locutores e colunistas esportivos ainda vivem
no passado e vendo o gramado cor de green e os teams
disputando football-association confundem a neblina cabocla
com o fog londrino, e dizem que o “hands foi
punido a duas jardas da grande área”, incorrendo em
duplo desprezo: à nossa língua e ao sistema métrico
decimal. A torcida que não sabe (nem quer saber) quanto mede
uma jarda, fica ignorando o sentido da distância.
Determinado
locutor esportivo, ao narrar lance de perigo à porta do gol,
disse que a bola subira “a uns quatro pés de altura”,
o que levou um ouvinte a perguntar se um pé de altura era
igual à altura de um pé de árvore...
Diria
eu que sim, e que o tal pé de árvore deveria ser plantado
numa jarra e enviado para o garden dos que ainda se amarram
nas unidades fundamentais do sistema inglês de medidas, ou
para o living-room daqueles que redigem com os cotovelos
montados sobre dicionários ingleses.
“Precisamos
de um designer para trabalhar em regime full time.
Queremos um gerente de marketing e um agente free
lancer”.
Estes
são exemplos de anúncios que pululam nos classificados
dos jornais, forma curiosa de pedir um desenhista ou projetista
para trabalhar em tempo integral, ou gerente de mercado, ou profissional
autônomo. Será que estamos à beira do Tamisa,
à sombra da Torre de Londres ou sob as luzes da Broadway...
("Jornal
de Letras" - outubro 1975)
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O
garoto Fábio (7 anos), possuidor de centenas de miniaturas
de soldados e índios, resolveu brincar de “Forte
Apache”; daí, chamou um camarada para chefiar o bando
de peles-vermelhas, depois de assumir o comando de numeroso contingente
de soldados “caras-pálidas”. Militares e índios
foram distribuídos em posições estratégicas;
uma bolinha de gude passou à categoria de projétil
de Winchester 73 e, antes de começar a batalha,
foram determinadas as regras do jogo:
Combatente
derrubado seria considerado morto e removido para o “cemitério”
(uma caixa de sapatos, vazia). Para a missão de “coveiro”,
foi convocado o Totonho (irmão menor do Fábio),
logo considerado como “representante da Cruz Vermelha”.
Para as funções de observador (e árbitro)
foi gentilmente convidado o avô dos pirralhos.
Tudo pronto,
começou a batalha. Aos primeiros tiros verificou-se que
o cara representante dos índios tinha pontaria certeira;
com apenas um disparo derrubava quatro, cinco, seis soldados.
Com cavalo e tudo.
Decorridos
uns 10 minutos de luta, a área da cobertura daquele edifício
na Rua São Salvador (Flamengo), lembrava o descampado de
Little Big Horn, onde os índios deram cabo das tropas
do general Custer e escalparam seu discutido comandante (dizem
que ele era um facínora). As tropas do “general”
Fábio estavam sendo implacavelmente massacradas pela veloz
bola de gude. O Totonho não tinha descanso: perninhas trôpegas,
recolhia os mortos, principalmente entre os soldados. O Fábio,
sentindo o amargoso paladar do irremediável revés,
contou seus últimos combatentes: um corneteiro, um soldado
batedor e dois cavalarianos. Olhou o campo adversário,
ainda com dezenas de guerreiros, e determinou a primeira “virada
de mesa”:
— Vamos
dar uma paradinha e fazer uma pequena modificação.
Meus soldados derrubados vão voltar...
O cara que
defendia os altos interesses dos índios protestou:
— Essa
não!... Os mortos não voltam jamais!...
O Fábio
respondeu:
— Droga,
acontece que meus soldados não estavam mortos; apenas tinham
sido levemente feridos e já estão curados pelos
médicos militares.
O camarada
dos índios procurou a intervenção do observador,
mas viu que ele dera no pé. “O árbitro”
sentira que a mesa tinha sido virada, iria virar outras vezes
e, absolutamente, não queria compactuar com tanta viração
(apesar de disfarçadas torcidinhas a favor do neto).
(Faço
uma pausa à margem da crônica, para revelar:
o avô dos garotos era um famoso juiz de Direito, titular,
na época, da 8ª Vara Criminal, um precursor
na aplicação da pena alternativa, admirado
por todos, pelo seu acentuado humanismo: Eliézer
Rosa). Voltemos ao Forte Apache:
O representante
dos índios acabou aceitando a tal “pequena modificação”,
pois, de certa forma, iria também beneficiá-lo:
voltariam muitos soldados, mas retornariam aqueles poucos índios
que haviam sido derrubados. Completo engano. O garoto cortou,
rapidamente, as justas pretensões do adversário,
advertindo:
— Droga!
Só meus soldados podem voltar. Teus índios não
têm médicos militares para curar os feridos...
A luta recomeçou
furiosa, dessa vez com os soldados em vantagem numérica.
Mas, pouco a pouco, os índios, enraivecidos, em melhores
posições estratégicas, iam dizimando os inimigos,
com tiros precisos e de efeitos devastadores. Do campo índio
vinha o aviso (preventivo de outras “viradas”):
— Dessa
vez eles não voltarão! Estão completamente
mortos.
O Totonho,
consternadíssimo com o “massacre”, cumpria
incansavelmente sua misericordiosa missão de “coveiro”.
Decorridos mais 5 minutos de combate, só restavam três
soldados a cavalo e um atirador a pé, contra duas dezenas
de índios montados em velozes mustangues, uns dez
flecheiros de grande competência, quatro caciques bem ornamentados
e cinco pajés altamente mandingueiros.
A situação
para o Fábio estava ruim, e pior ficou quando a bola de
gude, em trajetória enviezada, pegou de uma só vez
os três cavaleiros, derrubando-os espetacularmente. Só
restava o atirador a pé...
O Totonho
já estava colocado para remover o “cadáver”
do último “cara-pálida”, quando o Fábio
interrompeu o avanço da bola de gude que vinha certeira
para derrubar o atirador, e berrou:
— O
combate está interrompido. Temos que fazer outra pequena
modificação...
Aí,
o camarada dos índios pressentindo nova “virada de
mesa”, ameaçou:
— Ó
rapaz, não vai haver modificação nenhuma.
Teus soldados estão mortinhos e enterradões. O combate
tem que acabar honestamente.
Aí
o Fábio pediu um aparte e, mansamente, declarou:
—
Os mortos não voltarão. Dessa vez a pequena modificação
é a seguinte: agora, nós vamos trocar de lado...
(“O
Dia” – 5-11-1972)
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Cadê
o ângulo?
Naquele
anoitecer de 25 de maio de 1949, os players ingleses que
integravam o melhor time de futebol do mundo tomaram o tradicional
chá, entoaram, solenemente, o God Save The King
(em outra linguagem: deram um saravá legal pro seu Orixá,
o Rei Jorge VI) e, orgulhosos, se mandaram pra São Januário.
À noite, os britânicos do Arsenal de Londres iam
enfrentar o Vasco da Gama.
Os
súditos de Jorge VI já haviam jogado três
vezes contra times brasileiros. Na estréia, arrasaram o
aristocrático Fluminense por 5x1; depois, empataram com
o Palmeiras, 1x1 e caqueraram o Corinthians em 2x0. Os britânicos
estavam invictos...
Nos
idos de 1949, os ingleses eram consagrados os "Reis do Futebol",
e o Arsenal, o melhor time da Inglaterra. Pouco antes, andou pelo
Brasil, perdendo e ganhando, o Southampton, então time
da 2ª divisão inglesa. Mas o Arsenal não era
o Southampton...
Para
salvar o prestígio do futebol brasileiro, havia o Vasco
da Gama, considerado o melhor time da América do Sul. Naquela
época, o Vascão foi um dos maiores trunfos do Ministério
da Relações Exteriores de Portugal; o grito de guerra
da torcida vascaína, o "casaca, casaca, casaca,
a turma é mesmo boa, é mesmo da fuzarca!",
liderava as paradas de sucesso; enquanto a marchinha "O Boteco
do José" (É só dizer que é
vascaíno e que é amigo do Lelé) era um
brado de alegria e de vitória!
O
Rio de Janeiro parou por causa do jogo. O Estádio de São
Januário ia viver a mais gloriosa noite da sua história.
No Brasil, todo mundo de ouvido grudado no rádio. O Vasco,
apelidado de "Expresso da Vitória", ganhou outro
slogan, o de "Vingador" (artes da imprensa para
provocar o brio da tripulação do Almirante).
Dois
dias antes do jogo todas as cadeiras do estádio vascaíno
estavam vendidas, e o recorde de renda no continente ameaçado
de queda. E caiu! Cr$ 1.146.550,00 foram agasalhados nas bilheterias.
Uma quantia que dava para comprar uma frota de iates de alto luxo!...
Além
da importância do jogo, falavam na estréia, no Vasco,
do famosíssimo Heleno de Freitas. Não tinha conversa:
aquela peleja seria histórica. E foi.
Tom
Withaker, o manager do Arsenal, deu as últimas instruções
aos seus comandados e mandou que eles ganhassem aquela batalha.
E lá estavam Swindin, goal-keeper; Barnes e Smith,
backs; Macaulay, Daniel e Forbes, halfs; Mac Phearson,
Logie, Rock, Lishman e Vallance, fowards. Meninos, essa
gente havia derrubado a Luftwaffe (a aviação de
guerra alemã), derrotado o III Reich e também jogava
uma bola redondíssima.
A
nau vascaína era guarnecida por "mestres de navegação
à bola", tais como: Barbosa, Augusto e Sampaio; Eli
do Amparo, Danilo e Jorge (o sóbrio e eficiente Jorge!);
na alça de mira dos canhões do navio do Almirante
estavam os artilheiros Nestor, Maneca, Ademir, Ipojucan e Tuta.
O comandante desse poderoso ataque, Ademir, era chamado "o
homem-foguete", o que não impressionava os britânicos,
pois eles haviam enfrentado as terríveis bombas voadoras
V-1 e V-2 de Hitler.
Meu
povo, quando o apito inicial foi soprado, o Vascão mandou
pras cabeceiras. E olha o Arsenal encurralado! Swindin fazia milagres
para evitar a queda do arco dos canhoneiros e, falemos
a verdade, os britânicos suportavam a ofensiva vascaína,
digna e fleumaticamente. 0x0 no primeiro, partiram para o segundo
tempo.
Aí,
o Arsenal cresceu, encalhou o Vasco na defesa e pintava mais uma
vitória britânica. Mais um naufrágio brasileiro.
Porém, a nau do Almirante, rebocada pela torcida, safou-se
do banco de areia e partiu pra luta em alto-mar. 30 minutos do
2º tempo e o bombardeio em cima de Swindin era terrível...
Heleno
entrou no lugar de Ipojucan (Ipojucan sempre foi pelas calmarias...)
e Mario substituiu Tuta. Heleno enfunou as velas, botou pra frente,
mas cadê o gol? Mario dava shows, driblava as balizas
do arqueiro inglês e até o espírito da Rainha
Vitória, mas o placar continuava em branco. Os
gritos de gol morriam nas gargantas brasileiras e lusitanas pela
inabilidade do ponteiro direito Nestor. O atacante perdia gols
na cara de Swindin.
Atenção!
33 minutos do 2º tempo! A bola veio cruzada da esquerda,
passou pelo nariz do goleiro e, caprichosamente, caiu nos pés
de Nestor. Dali? Em cima da linha de fundo? Sem ângulo?
Zero grau? Dali mesmo, Nestor, sem as chamadas possibilidades
geométricas, chutou, e ante o espanto de Mr. Withaker,
dos rapazes do Arsenal, dos repórteres dos famosos jornais
ingleses e do pessoal da BBC de Londres, a bola estufou o barbante
de Swindin. Vasco 1x0!
Foi
o maior foguetório jamais explodido anteriormente nos céus
de São Januário. E o maior grito de gol ouvido no
estádio do Clube da Colina. Tremenda loucura dentro do
campo e em todo o Brasil. E Nestor? Bem, Nestor caiu durinho.
O nosso Nestor desmaiou...
Os
ingleses, britanicamente pasmados, balbuciavam: "Mas não
havia ângulo! Não é possível! Geometricamente,
não vale!" Valeu e permaneceu: Vasco 1x0. Assim acabou
a invencibilidade do Arsenal de Londres em campos brasileiros.
Bichão para cada jogador pela vitória brasileira-vascaína-lusitana.
Cr$ 2.500,00. Um senhor bicho para uma noite inesquecível.
("A
Notícia" - outubro 1971)
Veja mais detalhes desse histórico jogo (com fotos e a reprodução da caricatura que ilustra esta crônica) em http://www.netvasco.com.br/news/noticias15/65878.shtml
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A marchinha "O Boteco do José", referida na crônica acima, foi um dos grandes sucessos do carnaval de 1946. Composta por Wilson Batista e Augusto Garcez, gravada por Linda Batista, enaltecia o Vasco pela espetacular conquista do Campeonato Carioca de 1945 e consagrava o meia-direita Lelé, ao qual se juntavam os infernais atacantes Santo Cristo, Isaías, Djalma e Chico. O lusitano José, dono do boteco, a cada vitória vascaína - e eram muitas - promovia ruidosos festejos no estabelecimento, com muito foguetório, bebida (champanhada) e comida à vontade. Tudo de graça, em louvor ao Vascão da Gama...
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Os
sumos sacerdotes do "deus mercado"
Em
1725, um professor de Retórica da Universidade de Nápoles,
Giambattista Vico, escreveu o livro "Princípios de
uma Nova Ciência", no qual apontava três estágios
no gradual desenvolvimento da humanidade:
-
O "Tempo dos Deuses", marcado pelo fanatismo religioso,
quando tudo ficava subjugado à vontade de divindades.
Séculos de idolatria, superstições e presságios
sob o poder teocrático dos sumos sacerdotes.
-
A "Época dos Heróis", fase do surgimento
de destemidos guerreiros, lendários ou não, exemplificados
por Ulisses, Perseu, Hércules, Júlio César,
William Wallace, Robin Hood, El Cid e tantos mais.
-
A "Era
dos Homens", o progressivo advento dos direitos humanos;
o cultivo da democracia; o enfraquecimento do feudalismo e dos
poderes absolutos das monarquias; a repulsa à servidão;
a aurora dos anseios de liberdade, igualdade e fraternidade.
Estes
estágios (ou fases ou estados) levaram Auguste Comte, cerca
de cem anos depois de Vico, a construir sua conhecida "Lei
dos Três Estados: Teológico, Metafísico e Positivista".
A obra de Vico também impressionou outros notáveis
pensadores, entre eles Ugo Foscolo, Alessandro Manzoni, Hegel, Francesco
De Sanctis, Theodor Mommsen, Marx, Benedetto Croce, Oswald Spengler,
James Joyce e Arnold Toynbee.
Conseqüência
de sua aguçada percepção, Vico fez um vaticínio:
a "Era dos Homens" chegaria ao fim e a humanidade retrocederia
ao "Tempo dos Deuses", num inexorável movimento
cíclico, que não se consegue compreender nem deter.
A
nova toda-poderosa divindade
Hoje,
a humanidade está submetida ao "deus mercado",
fervorosamente consagrado por prepotentes sumos sacerdotes. A liturgia
da nova divindade apropriou-se da economia, para horror do espírito
de Antoine de Montchrestien, que em 1615 escreveu o livro "Traité
d'economie politique", obra consagrada como a base da ciência
econômica; também para desgosto de Charles Gide, professor
de economia política (de 1898 a 1920) na Universidade de
Paris, que definiu a economia como "a relação
entre todos os integrantes de uma sociedade, na medida em que essas
relações tendem à satisfação
de suas necessidades materiais".
Adam
Smith em "A riqueza das nações" (1776) deixou
claro que a economia política teria, sempre, de proporcionar
ao povo meios para obter sua digna subsistência.
Maynard Keynes, arejado economista inglês, fino literato,
filósofo humanista, patrono das artes, morreu de ataque cardíaco,
aos 63 anos, dias depois de grave discussão com aqueles que
no FMI, em 1946, impuseram os rumos da instituição
em favor da mercantilice...
No
devocionário dos sumos sacerdotes do "deus mercado"
não há espaço para esta prece de João
Paulo II: "A economia só será viável se
for humana, para o homem e pelo homem".
Os
adoradores da divindade chegam ao ridículo de atribuir-lhe
tangibilidade, e costumam dizer que o mercado está "nervoso,
irado" ou "calmo, sereno". Uma cretinice digna de
ser satirizada por Ovídio, o poeta romano que escrevia sobre
os humores dos deuses do Olimpo.
Entre
os dogmas do detestável "deus mercado" está
a devoção aos números, aos índices e
percentuais. Prestem atenção à insuportável
enxurrada de estatísticas que enchem enormes espaços
nos noticiários. Um comportamento que o renomado sociólogo
Pitirim Sorokin, em meados do século 20, já apelidava,
ironicamente, de "quantofrenia". Os índices das
bolsas de valores, as cotações das moedas, as apelidadas
"finanças comportamentais" (sic), os lucros ou
prejuízos das grandes empresas e até um tal "risco
Brasil" são enfadonhos para a quase totalidade da população,
mas fazem o delírio dos "quantofrênicos".
Os
sumos sacerdotes chegam a uma espécie de orgasmo de ninfomaníaca,
quando anunciam ou comentam os lucros dos grandes bancos...
Deplorável
insensibilidade
No
Brasil, o "Tempo dos Deuses" estarrece pela insensibilidade
dos pregoeiros da "excelente situação" da
nossa economia. O próprio presidente da República,
em tautológicas, metafóricas e acacianas manifestações,
habituou-se a proclamar: "O Brasil vive um momento mágico
na sua economia". Afirmação pavorosamente sobrenatural.
Que magia é esta ?
As
aparições do presidente na televisão, com sua
descontrolada verbosidade e ágil mobilidade corporal, contrastam
com imagens dos noticiários que exibem a miséria dos
nossos bairros pobres, complexos de favelas, casebres, mocambos,
barracos, refúgios feitos de latas, papelões, madeiras
apodrecidas, restos de plásticos, alvenarias mal arranjadas,
tudo cercado de valas infectas, além da presença das
nossas populações de rua, escombros humanos difíceis
de serem reconstruídos, e das gentes andrajosas e famintas
catando restos nos lixões, em meio às revoadas de
urubus ávidos de carniça.
Imagens
de pobreza e/ou indigência comprovadas pelos índices
de desenvolvimento humano, constantemente divulgados por instituições
internacionais, que deprimem nossos sentimentos cívicos,
mas não abalam a soberba dos sumos sacerdotes fanatizados
pelo canalha do "deus mercado".
"Momento
mágico", repete o presidente da República, cego
às nossas crianças que esmolam nos sinais de trânsito;
desconhecedor da enorme legião de brasileiros desempregados
que panfletam propaganda nas vias públicas; indiferente à
multidão de camelôs nas calçadas; alheio à
disseminação do odioso trabalho escravo.
Ignorando
a criminalidade que assola toda a população brasileira,
o presidente também usa e abusa do adjetivo "extraordinário"
para qualificar o momento econômico, sem se dar conta que
a violência tem origem, principalmente, na desigualdade social.
Uma anomalia que sempre afligiu o Brasil, e continuará afligindo,
haja vista a elevação da concentração
de renda (comprovada por índices oficiais), conseqüência
nefasta dos malefícios exalados pelo "deus mercado".
Desmantelamento
da educação e deformação da saúde
Agindo,
nas últimas décadas, com extrema pertinácia,
os sumos sacerdotes conseguiram desmantelar a educação
pública, fazendo-a cair no descrédito. Por sua vez,
a saúde foi submetida ao mesmo vil processo, o que resultou
na amarga situação de muitas dezenas de milhões
de brasileiros que não têm direito a um "convênio".
Ter "plano de saúde", que deveria ser uma opção,
passou a ser uma imposição.
Todos sabemos a via dolorosa nos hospitais e postos de atendimento,
no âmbito dos serviços públicos.
A
desenfreada mercantilização da saúde é
aberrante: as empresas gastam rios de dinheiro com publicidade,
intensa intermediação e escandalosos patrocínios
que se configuram nos apoios a clubes esportivos, pagamentos de
altos salários a jogadores de futebol e outras graves deformações.
Em contraponto estão os parcos pagamentos aos profissionais
da saúde e as demandas judiciais com os conveniados. Tudo
muito a gosto do "deus mercado"...
Ricardo
Boechat, jornalista e radialista, também apresentador de
noticiários na televisão, tem defendido uma idéia
bastante inteligente: no Brasil, todos os governantes, e seus parentes
próximos, deveriam ser obrigados a depender - unicamente
- dos serviços de saúde e educação públicas.
Idéia preciosíssima que, se posta em prática,
traria o resgate dos direitos assegurados nos artigos 196 a 200
e 205 a 214 da Constituição.
Aviltamento
da previdência pública
Em
abril/2008 o Senado Federal aprovou o projeto do senador Paulo Paim
que vincula o percentual de aumento do salário mínimo
aos benefícios dos aposentados e pensionistas. Foi o bastante
para enfurecer os sumos sacerdotes. Noticiários de rádio
e televisão, editoriais e matérias na imprensa, aligeirados
em defender os interesses da previdência privada, acusaram
o Senado de "provocar um rombo nas contas do INSS". O
ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, fez coro com os serviçais
do "todo-poderoso" ao acusar os senadores de "irresponsáveis".
Grosseiro insulto a figuras do nosso Senado.
Uma
indignidade contra Pedro Simon, este, que é um esplêndido
exemplo de humanismo e correção moral, a dignificar
o Congresso Nacional e nos dar esperança na decência
do gênero humano.
Uma estúpida agressão a Cristovam Buarque, nosso heróico
cavaleiro andante obstinado na sua guerra santa pela Educação.
Um
gesto alucinado contra Paulo Paim, autêntico paladino dos
valores consubstanciados na "Era dos Homens".
Não
vacilou, o ministro Paulo Bernardo, em atingir todos os senadores
que buscam deter a progressiva miséria que vai humilhando
os segurados do INSS.
Mas,
o ministro sofreu o justo repúdio de quem não se ajoelha
e lambe as mãos do "deus mercado". Repúdio
no qual tem se destacado o senador Mão Santa, dono de um
discurso descontraído, coloquial, bem-humorado, tudo entremeado
do aviso "atentai bem!", marca da sua oratória.
Uma eloqüência que, apesar de alguns ímpetos provocadores
de polêmicas, seria aprovada por Giambattista Vico, se o político
piauiense tivesse sido seu aluno na Universidade de Nápoles.
Todavia
os sumos sacerdotes já conspiram, na Câmara Federal,
para barrar o projeto aprovado no Senado. Em nome do "momento
mágico" da economia do país, o PT e seus aliados
lutarão contra aposentados e pensionistas, num revoltante
exemplo de traição ao ingênuo eleitorado, eis
que todos os petistas - sem exceção - fizeram em suas
campanhas eleitorais solenes promessas de apoio aos segurados do
INSS. E aqui vale lembrar o pensamento de Rui Barbosa:
"O
essencial não é estar na profissão do credo,
mas na prática das obras".
A
resistência
No
jornalismo desde 1967, optei pela oposição à
nova divindade. Na Confederação Nacional dos Trabalhadores
no Comércio, onde ao longo de 23 anos fui editor do órgão
de comunicação da entidade, e onde tive inteira liberdade
de expressão, elaborei centenas de matérias e artigos,
que assinei, em defesa dos direitos sociais, uma luta que se insere
no histórico da CNTC.
Ainda
no jornalismo sindical, a batalha continua no Sindicovi-Rio, com
gratificante repercussão em variados veículos de divulgação.
Destaco entre estes, o "Monitor Mercantil", influente
jornal especializado em assuntos econômicos, fundado em 1912,
que na edição de 28-12-2006 estampou a íntegra
do meu artigo "Aviltamento da previdência pública".
Fato que, pelo seu elevado significado, conforta e anima os resistentes
à avassaladora força do "deus mercado" e
seus execráveis sumos sacerdotes.
Maio/2008
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A morte súbita do neoliberalismo
A partir do Consenso de Washington, realizado ao início dos anos 90, o chamado neoliberalismo foi imposto ao mundo, em meio à endeusada globalização. A então onipotente Margareth Thatcher, a "Dama de Ferro", tornou-se comandante-em-chefe do movimento que proclamava o Estado mínimo, revivendo vários liberais dos séculos 18 e 19, entre eles Jeremy Bentham, Henry David Thoreau e Stuart Mill, que tiveram suas obras ardilosamente manipuladas, com a exaltação do utilitarismo. O objetivo da manipulação era reduzir o poder estatal, limitando-o à manutenção da soberania nacional e da ordem pública interna, à garantia do cumprimento dos contratos e à proteção dos direitos individuais de propriedade.
O neoliberalismo tornou-se regra-de-fé do deus mercado, sacralizada pelos seus sumos sacerdotes. Até setembro de 2008, propalava-se que o mundo vivia "uma fase de segura prosperidade econômica, direcionada a proporcionar cada vez mais felicidade a um número maior de pessoas". Era a consubstanciação do tal "momento mágico", tão endeusado pelo presidente Lula em suas agitadas falas diárias.
Também especialistas em finanças internacionais, exalando sapiência, aplaudiam a "inteligente política habitacional, através de ferramentas que garantiam a musculatura da economia norte-americana". Tudo falso!
Repentinamente o neoliberalismo morreu e uma crise financeira apareceu de forma horrenda. O Estado, que se desejava mínimo, foi chamado a socorrer empresas, tapar rombos abertos por especuladores, acalmar investidores e evitar megadesastres econômicos.
Mas, o súbito fim do neoliberalismo não significa a morte do deus mercado. Essa peste continua vivíssima, através da permanente doutrinação dos seus sumos sacerdotes. A crise atingirá, com maior contundência, o povo miúdo, os mais desvalidos. Prova é a posição das altas autoridades financeiras, que falam em bilhões, trilhões, sejam dólares, euros ou reais, para salvar poderosas instituições.
Como exemplo, vale apontar a atitude da senadora Ideli Salvatti que já se apressou em usar a crise econômica para justificar sua odiosa posição contra um aumento decente dos proventos de aposentados e pensionistas do INSS e a extinção do injusto "fator previdenciário", que tanto prejudica os trabalhadores brasileiros. A parlamentar petista tem se revelado uma furiosa alta sacerdotisa do deus mercado. Tomara que as divindades do bem tenham piedade dela e daqueles que se batem por generosa ajuda estatal a instituições privadas, mas são insensíveis às condições que fazem o Brasil ser o deplorável campeão mundial da desigualdade social.
Gente que ignora aquela menina de 7 anos, moradora numa pequena cidade de Pernambuco; ela, entrevistada por uma repórter de televisão, disse que quando não tem comida, come barro. E ante o comovido espanto da jornalista, acrescentou: "Sim, moça, barro alimenta"...
Novembro/2008.
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João Havelange - "o grande orixá branco"
Nas primeiras décadas do século passado, o futebol ficou restrito a países europeus e sul-americanos; apenas em 1934, na Copa do Mundo na Itália, é que surgiu a seleção do Egito, logo eliminada no seu primeiro jogo, com a Hungria, por 4 x 2. Na Copa da França, 1938, o time das Índias Holandesas (atual Indonésia) foi batido, também pela Hungria, por 6 x 0.
Em 1954 coube mais uma vez aos húngaros derrotar outra seleção não pertencente ao âmbito europeu ou sul-americano: a Coréia do Sul foi impiedosamente batida por 9 x 0. No jogo seguinte os asiáticos perderam para a Turquia, 7 x 0.
Todavia, em 1966, na Copa da Inglaterra, outro país da Ásia, a Coréia do Norte, teve melhor desempenho e conseguiu chegar às quartas de final após empatar com o Chile, 1 x 1, e vencer a Itália, 1 x 0. No "mata-mata", os velozes norte-coreanos perderam para Portugal, mas foram a grande e boa surpresa da Copa.
Até então, apenas um jogador não europeu ou sul-americano havia alcançado prestígio mundial, o hábil meia de ligação Ben Barek, um marroquino nascido em 1917, que atuou nas seleções do seu país, da França e Espanha. Em 1966, Portugal conquistou o 3º lugar com uma seleção na qual brilhavam os moçambicanos Coluna e Eusébio.
Na Copa do México, em 1970, o Marrocos obteve apenas um empate, sofreu duas derrotas e foi desclassificado. Em 1974, a seleção do Zaire foi derrotada pela Escócia, 2 x 0; Iugoslávia, 9 x 0, e Brasil, 3 x 0.
Mas, após João Havelange assumir a presidência da FIFA em 1974, africanos e asiáticos passaram a impor respeito. Em 1978, na Copa da Argentina, a Tunísia não decepcionou, pois derrotou o México, 3 x 1, perdeu para a Polônia, 1 x 0 e empatou com a poderosa Alemanha Ocidental, 0 x 0.
A Copa de 1982, na Espanha, assinalou a consolidação da África negra (a parte continental ao sul do Trópico de Câncer), quando a seleção de Camarões, onde se destacava Roger Milla, empatou com o Peru, 0 x0; Polônia, 0 x 0, e Itália, 1 x 1. Em 1990, Camarões voltou a ser destaque ao vencer a Argentina, 1 x 0, e Romênia, 2 x 1; na fase seguinte bateu a Colômbia, 2 x 1, mas perdeu para a Inglaterra (nas quartas de final) por 3 x 2, na prorrogação. Os "Leões Africanos", como foram chamados pela mídia esportiva, tornaram-se a sensação da Copa, com o malabarismo dos dribles e a precisão do toque de bola.
A África foi à Copa de 2006 com as seleções da Costa do Marfim, Gana, Togo e Angola, mostrando o acerto de João Havelange em estender o futebol aos cinco continentes. Somente uns poucos, uns alguns, acreditavam, sem ressalvas, no pleno êxito de tão arrojado e difícil objetivo, que hoje está evidente no grande número de jogadores, principalmente da África negra, que participam de campeonatos nos mais variados países. Fato que representa benéficos efeitos - em seus múltiplos aspectos - para os povos da África Subsaariana e da África Austral, vítimas de elevados índices de pobreza, degradados por extremas carências.
A realização da Copa do Mundo de 2010, na África do Sul, consagrará o trabalho projetado e realizado com singular tenacidade por aquele que bem merece o título de o grande orixá branco.
Novembro/2008.
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Tributo
a Celso Kelly

A descontração das bailarinas, fixada na tela de Degas, intitulada "Répétition d'un ballet sur la scéne" ("Ensaio de balé no palco") é um belo exemplo da arte dos pintores impressionistas, inconformados com os rigores do academicismo e o confinamento nos austeros limites dos ateliês. Artistas desejosos de retratar, no mesmo instante, o que viam e sentiam. Um movimento surgido na primeira metade do século19, nas paisagens marinhas, campestres e urbanas da França, assim analisado por Celso Kelly:
"O impressionismo desbravou. Em primeiro lugar, liberou a pintura dos preconceitos acadêmicos e assim lhe permitiu novas audácias. Superada a nitidez dos contornos (em que predominava o desenho), as massas e os volumes resultam das pastas de cor, e a atmosfera envolve as coisas, reduzindo-as, muitas vezes, ao momento de um flagrante".
Celso Kelly, como arguto crítico de arte, assim classifica os pintores impressionistas:
"Um analista da natureza que compreendeu, de pronto, que a paisagem ou o ambiente, povoado ou não de criaturas humanas, ia além de um amontoado de pessoas e coisas; havia planos, perspectiva, cambiantes de cor, variações de luz, movimento constante, a mais contínua mutabilidade. Impôs-se, desde logo, a captação dessa inquietação, que corresponde ao que se pode chamar de vida no cenário que nos envolve".
Os textos apresentados são transcrições do livro "Novos Caminhos" de Celso Kelly (Agir Editora - 1976), uma valiosa coletânea de ensaios que se transformam num autêntico tratado, indispensável a jornalistas, comunicadores e cultores das artes plásticas. Obra de fôlego de um humanista de elevado conceito nos meios intelectuais e artísticos do Rio e do Brasil. O admirável iluminista que foi diretor do Teatro Municipal, ativo participante da Comissão Artística, quando criou e incentivou variados e inovadores projetos, entre eles o que, inteligentemente, abriu as portas da hoje centenária casa da ópera e do balé, a artistas plásticos, dando-lhes oportunidade de reproduzir cenas dos espetáculos apresentados. A mesma oportunidade proporcionada, em Paris, a Degas, que capturou o ensaio das bailarinas, hoje imortalizadas no Museu do Louvre.
Maio/2009.
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Ave Maria para os favelados
A crônica seguinte tem base na matéria que escrevi há 20 anos no jornal da Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio e, infelizmente, o assunto venceu o tempo, permanecendo bastante atual.
A favelização das cidades brasileiras, com sua miséria e violência, era denunciada no princípio do século 20 pelo jornalista e escritor Luiz Edmundo que, no seu livro “O Rio de Janeiro do Meu Tempo”, mostrou as condições dos habitantes do antigo morro de Santo Antonio. Eis a transcrição:
Em Santo Antonio, outeiro pobre, apesar da situação em que se encrava na cidade, as moradas são, em grande maioria, feitas de improviso, sobras e farrapos, andrajosas e tristes como os seus moradores. Por elas vivem mendigos, os autênticos, quando não se vão instalar pelas hospedarias da rua da Misericórdia, capoeiras, malandros, vagabundos de toda sorte, mulheres sem arrimo de parentes, velhos dos que já não podem mais trabalhar, crianças, verdadeiros desprezados da sorte, esquecidos de Deus...
O cronista carioca cobrou responsabilidades por tanta degradação social e, alongou seu relato:
O morro de Santo Antonio é um verdadeiro arraial de infortúnio, chaga cruciante da miséria humana. Santo Antonio dos desgraçados! Só a vegetação é poderosa e rica, por qualquer ponto rebentando com viço e com frescor, em caules, e folhagens que dão sombra, graça e amenidade ao desmantelo ali gerado pela mão do homem. Alcançamos, enfim, uma parte do povoado mais ou menos plana e onde se desenrola a cidadela miseranda. O chão é rugoso e áspero, o arvoredo pobre de folhas, abaixo, tapetes de tiririca ou de capim surgindo pelos caminhos mal traçados e tortos. Todo um conjunto desmantelado e torvo de habitações sem linha e sem valor.
É uma árvore plantada, aqui, outra acolá, outra mais além, em meio a um casario cor-de-ferrugem, arrebentado e decrépito. Construções, em geral, de madeira servida, tábuas imprestáveis das que se arrancam a caixotes que serviram ao transporte de banha ou bacalhau, mal fixadas, remendadas, de cores e qualidades diferentes, umas saltando aqui, outras entortando acolá, apodrecidas, estilhaçadas ou negras. Coberturas de zinco velho, raramente, ondulado, lataria que se aproveita ao vasilhame servido, feitas em folha-de-flandres. Tudo entrelaçando, toscamente, sem ordem e sem capricho.
Quando chove, a água penetra dentro da morada pelos interstícios do tapume. O chão, por isso, deve ser arranjado em declive para que não se transforme em poças. Quando faz sol, o zinco aquece, incendeia; cada barraco é um forno onde ninguém fica, porque morre. Pior é quando venta forte, uma vez que todo esse material, e molambos, desfaz-se, tomba e se dispersa pela encosta da montanha.
O morro, ao longo do tempo, foi progressivamente desmontado para servir de aterro a diversas áreas da cidade, só restando, atualmente, a parte onde está o Convento de Santo Antonio. Mas não era somente aquele morro que mostrava a aguda miséria de uma população. Outros disseminavam-se na paisagem do Rio, entre eles o do Castelo (cujo desmonte foi completado em 1922). Registros históricos dos meados do século 19 apontam que em 10 de fevereiro de 1811 uma tempestade de verão assolou o Rio e fez desabar partes desse morro, soterrando muitas casas, matando dezenas de pessoas. As enxurradas, que tantas tragédias causam entre habitantes dos morros, eram lamentadas por Luiz Edmundo:
Aqui está um barraco que a última enxurrada não desfez, mas entortou. Com um pé-de-vento ainda pode cair de todo. Dentro dele há uma mulher despreocupada que canta, passando roupa a ferro. Num caixotinho, ao lado, estão dormindo, a sono solto, dois anjos cor-de-rosa, um, parecendo ter menos de dois anos e outro, uns meses, apenas.
A visão dos poetas
Ao contrário do que é cantado em "Chão de Estrelas", hino dos seresteiros, de Orestes Barbosa, o teto de zinco jamais foi romântico. Ao invés de desenhar "estrelas que salpicavam nosso chão", os furos - na realidade - produzem torturantes goteiras. "Ave Maria no Morro", reza: "quem mora lá no morro já vive pertinho do céu". Na realidade, padecer dentro de um casebre de zinco não é ter nenhuma intimidade celestial. Todavia, no carnaval de 1962, inconformados com a multiplicação e miséria das favelas, Luiz Antonio e Oldemar Magalhães protestavam:
Ai! barracão / Pendurado no morro / E pedindo socorro /
A cidade, a seus pés / Ai barracão / Tua voz eu escuto /
Não te esqueço um minuto / Porque sei, que tu és /
Barracão de zinco / Tradição do meu país
Barracão de zinco / Pobretão, infeliz.
A visão do bom senso
Favelas, mocambos, casebres de sapê, papelão, tábuas, lata, isopor ou palha, são consequências da insensibilidade geral. O Santo Antonio dos Desgraçados, tão lastimado por Luiz Edmundo, não alterou a indiferença dos governantes, e o resultado é a existência de milhares de bairros miseráveis, em todo o país, cujos habitantes transbordam ocupando praças, terrenos baldios, marquises, viadutos, pontes, entocados em ruínas e construções abandonadas. Um quadro que nos é profundamente constrangedor, pois tem sido exibido nos telejornais de todos os países, embora o presidente Lula queira, com obstinação, fazer acreditar que o Brasil seja uma influente potência econômica, com todo o direito, inclusive, de fazer parte, como membro permanente, do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. Nossa deplorável realidade social está provada pelos últimos Índices de Desenvolvimento Humano - da ONU, que nos colocam atrás, entre países latino-americanos, do Chile, Argentina, Uruguai, Cuba, México, Costa Rica, Venezuela e Panamá. No quadro geral estamos num melancólico 74º lugar, o que em nada nos dignifica.
A recente tragédia ocorrida no morro do Bumba, em Niterói, tenebrosa sobre todos os aspectos, é um veemente atestado de desqualificação para a incorrigível soberba do nosso presidente.
Maio/2010.
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TIM,
UM VIRA-LATA DE ALTA VOLTAGEM
Ao
início do verão de 1972, escrevia eu sobre apelidos
de jogadores de futebol, matéria para ser publicada
no histórico vespertino "A Notícia".
Naquele dia, meus comentários eram sobre Zagalo,
chamado de "Formiguinha" em decorrência do seu
infatigável trabalho, ligando defesa
e ataque. Datilografava a crônica, quando uma
cigarra entrou pela janela, pousou na tecla Z da máquina
de escrever e protestou veementemente contra meus elogios às
formigas, motivados pela conhecida fábula "A
Cigarra e a Formiga".
O sonoro inseto assegurou-me que aquela historinha não
passava de uma descarada mentira. Publiquei todos os seus
argumentos na crônica que intitulei "O
pouso na tecla Z".
Anos
depois, entendi que a cigarra tinha inteira razão,
ao ler um trabalho do cientista francês Jean Henri
Fabre, uma das maiores autoridades mundiais em entomologia,
autor de Souvenirs
entomologiques, gigantesca obra em 10 volumes publicada
entre 1879 e 1909. Fabre revela: a fábula que serve
de símbolo ao trabalho previdente das formigas, em contraste
à imprudência das cigarras, é uma empulhação.
Na verdade, as formigas são insaciáveis predadoras,
impiedosas facínoras, enquanto as cigarras, nossas seresteiras
do verão, cumprem admiravelmente seu ciclo vital, sem
atormentar a vida de ninguém.
Outro
meu diálogo com um inseto, publicado com o título
"O grilo e a morte da segunda pessoa do plural", pode
ser lido na abertura deste link, "Crônicas
que vencem o tempo".
Recentemente,
tive a oportunidade de conversar com mais um ser do mundo
animal, dessa vez o Tim, esperto vira-lata, nascido e muito
bem criado no canil da Lúcia, que abriga dezoito felizes
caninos, lugar um tanto tumultuado, mas sempre abençoado
por São
Francisco de Assis, situado na Ilha do Governador, no Rio.
Tim
chegou-se a mim ostentando no pescoço um vistoso escudo
do Botafogo, exibindo sua preferência clubística,
que também é de todos os cães e cadelas
do afortunado canil. Prova de fidelidade àquela que
os acolheu e adotou, uma fervorosa torcedora da Estrela Solitária.
Após
apresentar-me sinceras condolências pela situação
do América F.C. desejando que o clube de Campos Sales
volte a ser grande, de acordo com a magnitude de sua tradição,
o solidário e fraterno vira-lata perguntou-me:
-
Por que o bicho-homem não usa a força da gravidade
para gerar energia elétrica?
Espantado,
demorei em catar resposta, e o energético Tim prosseguiu:
-
Existem grandes relógios de parede cuja movimentação
dos ponteiros é feita através de um par de pesos
submetidos à força da gravidade. Já sei,
você vai dizer que quando um dos pesos chega ao chão
há necessidade de, manualmente, acionar o outro peso, e
assim sucessivamente, o que prejudicaria o permanente fluxo da
corrente elétrica.
Sem
me permitir qualquer contraposição, Tim, com
poderosa carga de megawatts, continuou:
-
Veja bem: existem sistemas de capacitância, ou dispositivos
interligados, ou relés os mais diversos e de tantas funções.
A gravidade, sim, pode ser utilizada como um poderoso dínamo,
transformando energia mecânica em energia elétrica.
A questão
proposta pelo dinâmico Tim, um cão de intensa amperagem,
merece reflexões. O
bicho-homem até tem procurado novas fontes de produção
de eletricidade, entre elas a eólica, através de
vistosos cataventos de concepção
futurista, mas não desiste de devastar a natureza construindo
hidrelétricas
ou, de forma alucinada, usinas termonucleares. Tudo me faz
lembrar a figura de Michael Faraday, o genial inglês, nascido
em 1791, filho de um modesto ferreiro. Aos 14 anos, com elementar
instrução escolar, tornou-se aprendiz de encadernador;
mas, com vocação autodidata, buscou ampliar seus
conhecimentos, até ser
distinguido como o maior nome da ciência experimental no
século
19. Em 1831 foi o primeiro a construir um gerador elétrico,
uma das suas impressionantes realizações, entre muitas
que o consagraram como o "Mago da Eletricidade". Faraday
legou à humanidade
este precioso pensamento:
"Deixe
a imaginação fluir,
guiada pelo discernimento,
mas refreando-a e dirigindo-a pela experimentação.
Nos casos de maior sucesso (de investigação
científica) não se realiza
sequer a décima parte das sugestões, esperanças,
desejos e conclusões preliminares. A natureza é nossa
melhor amiga em ciência
experimental, quando deixamos que suas insinuações
penetrem livremente em nosso espírito.
Nada é tão bom como uma experiência que,
ao mesmo tempo que corrige um erro, recompensa a nossa humildade
com um grande avanço no conhecimento".
Maio/2011
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